Sobre o encargo na formação de obreiros.
A formação missional deve ser feita pela igreja local? Como pastor titular de uma igreja local durante muitos anos e também como líder de uma agência missionária que já ajudou mais de 60.000 igrejas brasileiras a cumprir a missão, conheço os dois lados dessa questão que às vezes se torna polêmica. Que ninguém trate esse assunto levianamente, pois o sucesso da obra missionária está profundamente conectado à preparação dos obreiros. “E as palavras que me ouviu dizer na presença de muitas testemunhas, confie-as a homens fiéis que sejam também capazes de ensinar outros.” 2Tm 2:2 NVI; neste versículo Paulo concentra as três ideias: a formação de obreiros na igreja local, confiada a um líder de formação externa, ampla e difersificada. Não há respostas fáceis para a questão da formação local ou externa, então quero compartilhar discernimento pela leitura e prática das Escrituras, como pastor local e como missiólogo e líder de uma agência missionária.
Se assumirmos uma posição pela formação missional na igreja local, ouviremos pastores e líderes enfatizando os seguintes argumentos. A igreja local é o Corpo de Cristo e tem todos os recursos necessários para formar seus obreiros. A formação na igreja local proporciona um conhecimento contextualizado dos ambientes em que o obreiro deverá trabalhar. É uma solução econômica, já que o obreiro em treinamento não precisa deixar sua casa, nem há custos para o sustento de uma agência missionária. Ao treinar os próprios obreiros, a igreja não corre o risco de diluir sua identidade teológica e cultural, eliminando a influência de outras linhas de pensamento. Ao assumir o treinamento, a igreja mantém seus obreiros, evitando que eles sejam atraídos para outros campos e projetos. Assim a igreja também se empodera, concentrando toda a autoridade e responsabilidade sobre os obreiros e seus projetos.
Esses seis argumentos em favor da formação missional exclusivamente na igreja local são, de fato, mais fortes e difundidos do que se imagina. Eles refletem uma crescente insatisfação com a as exigências da formação missiológica e as demandas do estudo teológico. Isso tem levado a um movimento reacionário: muitos seminários estão se desarticulando, sendo substituídos por cursos teológicos menos intensivos e pouco exigentes, ministrados em salas improvisadas nos fundos das igrejas, por obreiros com experiência, mas sem o necessário preparo para o ensino. Esse fenômeno evidencia a tendência de centralizar a formação de obreiros dentro das próprias igrejas, com uma estrutura mínima e, muitas vezes, com pouca profundidade.
Entretanto, as consequências desse movimento são preocupantes e precisam ser avaliadas com seriedade. Primeiramente, a força missionária brasileira tem se concentrado em áreas já evangelizadas, enquanto povos não alcançados continuam sem testemunho do Evangelho. Isso ocorre porque muitos obreiros preferem servir em contextos confortáveis e familiares, faltando-lhes a preparação e a visão de longo alcance para atuar em campos transculturais. Além disso, as igrejas locais estão repletas de obreiros cujas responsabilidades são limitadas a rotinas menores, sem uma perspectiva tático-estratégica, o que limita o crescimento real da igreja, que maiormente não ultrapassa o ritmo de crescimento orgânico das comunidades em que estão.
Outro sinal crítico é a falta de preparo adequado, refletida na alta taxa de missionários que retornam do campo devido à falta de formação missiológica. Muitos obreiros, mesmo atuando em suas igrejas locais, sentem-se insuficientemente preparados para o ministério com a formação que receberam. Buscam, então, complementar o aprendizado teológico com cursos em áreas como a psicologia, na esperança de superar deficiências e atender melhor às demandas das pessoas sob sua liderança. Ironicamente, ao tentar resolver essas dificuldades, algumas igrejas locais expandem sua influência para atrair outras congregações, convertendo-se elas mesmas em agências paraeclesiásticas como as que tentaram substituir.
Há também uma evidente crise de conhecimento bíblico, uma fraqueza doutrinária entre os evangélicos brasileiros, ao mesmo tempo em que todo o tipo de seitas se equipa para o debate apologético. Isto resulta em insegurança teológica entre os novos obreiros, frequentes fracassos na evangelização e o desvio de muitos jovens iludidos pelo mundo. A dificuldade das igrejas em formar obreiros capacitados para dialogar com temas contemporâneos é gritante. É fácil observar como as igrejas evangélicas, quando se fecham em si mesmas, têm se mostrado pouco preparadas para discutir as questões da pós-modernidade, deixando de se conectar com as novas gerações e de serem culturalmente relevantes. Sobre isto, o receio de não saber as respostas para questionamentos do mundo é uma das principais razões pelas quais as novas gerações hesitam em testemunhar do Evangelho.
Esse cenário se agrava quando pensamos na influência da sociedade secular sobre temas essenciais para o Evangelho, como ética, justiça social, identidade e propósito. A falta de uma formação ministerial estruturada e robusta faz com que muitos obreiros tenham dificuldade em lidar com esses assuntos de maneira bíblica, alienando-se cada vez mais dos problemas da sociedade e tornando-se menos influente na transformação de vidas. Por outro lado, não estão preparados para filtrar e impedir o avanço do pensamento mundano dentro da igreja e as pressões sociais e políticas contra a fé e a prática bíblicas, colocando em risco até mesmo a liberdade de consciência dos crentes. Se a formação missional de alto nível fosse possível nas restrições da igreja local, ela já teria acontecido. Ao invés disso vemos um enfraquecimento generalizado na capacidade da uma geração que fechou os seminários e abandonou as agências missionárias para se concentrar nas células.
.
Abram os olhos e vejam os campos
Diante do cenário da formação missional de obreiros, o episódio de Jesus e a mulher samaritana oferece uma aplicação interessante. No início de seu trabalho, Jesus não se prendeu a uma localidade e, na verdade, nunca o fez. Seus discípulos foram treinados em uma jornada contínua, passando por diversas realidades e encontrando pessoas de todas as origens. Na cidade de Sicar, eles se depararam com uma cultura e religião diferentes, tão distintas que geravam discriminação. Jesus, ainda assim, ampliou a diversidade ao iniciar seu trabalho com uma mulher estigmatizada por sua história de relacionamentos. Enquanto isso, os discípulos estavam ocupados consigo mesmos, comprando comida e se preparando para comer. Naquela situação, a exortação de Jesus tinha o objetivo de tirá-los dessa mentalidade restrita e fazê-los enxergar além de sua própria localidade: ‘Abram os olhos!’
Mesmo que o ministério inicial de Jesus fosse para as ovelhas perdidas da casa de Israel e que os discípulos, imersos em seu contexto israelita, fossem capazes de servir ali, a mentalidade local tornou-se um obstáculo quando chegou a hora de ir até os confins da terra. A Pedro foi necessário dizer: “… Não chame impuro ao que Deus purificou” At 10:15, NVI. Ainda assim, coube a Paulo, homem de formação mais ampla, tornar-se o apóstolo aos gentios. Depois de sua conversão Paulo foi para a Arábia e retornou para Damasco (Gl 1:17,18). Passados três anos, ele foi a Jerusalém por 15 dias e conheceu Pedro e Tiago. Segui para Tarso, sua cidade natal, onde trabalhou nas igrejas e continuou a se desenvolver. Finalmente foi para Antioquia (At 11:25,26) a convite de Barnabé e integrou a equipe de liderança da igreja. Foi essa igreja que o envio em missões. O mesmo padrão de formação ministerial fora da igreja local se repetiu com Timóteo, cuja capacitação como obreiro foi conduzida por Paulo.
Embora ainda adolescente, Timóteo já era ativo em sua igreja em Listra e tinha um bom testemunho entre os líderes de Derbe, cidade vizinha. Mas isso, por si só, não seria suficiente para as responsabilidades que ele teria e o serviço que deveria prestar ao Reino de Deus. Muitos líderes foram formados nas igrejas locais de Listra e Derbe e serviram bem, sem nunca saírem dali. Mas, para Timóteo, o plano era outro. Ele foi tirado de sua família e da igreja local, sendo levado por todo o Império Romano, vivenciando diferentes situações missionárias, igrejas e seus problemas, para receber uma formação suficientemente abrangente. Essa formação diversificada, abrangente e prática foi o diferencial que preparou Timóteo para enfrentar as complexidades de liderar a igreja em uma cidade estratégica como Éfeso.
De forma semelhante, no avivamento missionário dos anos 80 no Brasil, vimos igrejas despertarem para o envio de obreiros preparados para enfrentar os campos transculturais. As igrejas olharam para além de seus próprios interesses, mirando ‘os confins da terra’. Nomes como o do pastor Edison Queiroz, da PIB em Santo André, foram fundamentais nesse movimento, promovendo grandes conferências missionárias que inspiraram milhares. Foi também nessa época que muitas igrejas começaram a organizar Conselhos Missionários, fortalecendo o compromisso de enviar e sustentar obreiros. O pastor Jonathan Ferreira dos Santos deu início à Missão Antioquia (1976), primeira agência interdenominacional, enquanto O pastor Waldemar de Carvalho fundou a Missão Kairós (1988), ambos movidos por uma paixão de ver brasileiros levando o Evangelho a outros povos. Muitos outros líderes contribuíram para aquele despertamento. Em paralelo, os seminários e cursos de capacitação ministerial estavam repletos de jovens, ansiosos por servir. Esse fervor contribuiu significativamente para o crescimento da força missionária brasileira e coincidiu com um aumento expressivo no número de evangélicos e de igrejas no Brasil. Quando a igreja levantou os olhos para os campos, ela cresceu.
Lembro de conversar com o pastor Edison Queiroz, que defendia ativamente a obra missionária ser feita pela igreja local, e ainda assim participou da organização de várias agências missionárias. Em uma dessas conversas, ouvi dele que ‘as agências missionárias existem porque as igrejas não cumprem sua missão’. Ainda concordo com essa ideia, embora hoje reconheça que nem sempre se trata de má vontade, mas, frequentemente, da falta de especialização que leva à inoperância. A formação de obreiros capazes de enfrentar os desafios missionários em novas fronteiras exige um preparo especializado que, por maior que seja, a igreja local dificilmente consegue oferecer. Quando insiste, acaba gerando formações provisórias, incompletas e inadequadas para as realidades fora do contexto local. Por isso, as igrejas que maior sucesso tiveram no campo recorreram à ajuda de respeitáveis agências missionárias e bons institutos bíblicos para preparar seus obreiros. O sucesso na obra missionária demanda que as igrejas reconheçam suas limitações e valorizem o papel dessas organizações que oferecem a especialização necessária para capacitar obreiros a lidar com desafios globais.
.
Atire o seu pão sobre as águas
A formação de obreiros na igreja local não pode ser minimizada. As igrejas sempre formaram e continuarão a formar líderes para atender suas necessidades imediatas. O que é inegável, porém, é que os líderes formados localmente não terão a visão, o conhecimento e a experiência suficientes para liderar em contextos diferentes daqueles em que foram treinados. Serão ótimos líderes para a igreja local, mas terão dificuldade de ir além dela. Em comunidades mais centradas no culto e na congregação, não serão capazes nem mesmo de lidar com as diferentes subculturas em seu espaço próximo, como frequentemente se observa.
Experimentei essa dualidade durante os anos em que pastoreei exclusivamente. Ao identificar cada líder despontando na igreja, precisei decidir se seria alguém para Jerusalém e Judéia, ou para Samaria ou para os confins da terra. Aqueles que ficariam na congregação e nas comunidades ao redor, foram sempre treinados por mim, na igreja local. Aqueles que iriam para culturas vizinhas, ou que precisavam de uma visão mais abrangente, como os pastores que ordenei, receberam uma combinação de capacitação na igreja local com treinamento em agências especializadas, como faculdades teológicas, por exemplo. Mas aqueles cuja vocação apontava para os confins da terra, enviei para serem treinados e depois estagiarem fora da igreja local.
Com a idade que Timóteo teria ao ser levado por Paulo, eu também fui para um seminário como interno. Meus pastores não compreenderam muito bem porque eu precisava de uma formação além da igreja local, mas meu pai, um plantador de igrejas, acostumado aos desafios de diferentes realidades socioculturais, me apoiou integralmente. Mais tarde, o período que dediquei a diferentes formações e ao trabalho secular, associados ao ministério itinerante, ampliaram ainda mais a minha visão e me prepararam para um ministério de maior impacto. Depois de alguns anos como pastor, sempre investindo na formação de líderes, no inverno de 1997, quando me senti compelido a interceder pelo movimento evangélico no Brasil, entendi que deveria ajudar as igrejas evangélicas brasileiras a cumprir sua missão bíblica de comunicar o Evangelho a todas as pessoas. Percebi também que oferecer formação missional mais abrangente seria essencial para fortalecer o movimento evangélico brasileiro. Essa convicção se tornou uma das diretrizes da agência missionária que fundei três anos depois.
Por 25 anos a AMME tem oferecido formação missional a mais de 60.000 igrejas que ajudamos no Brasil, e tantas outras que ajudamos no exterior. Nesse período fizemos pesquisas e desenvolvemos recursos que uma igreja local não poderia fazer. Ajudamos na inspiração missional e na capacitação ampla de milhares de obreiros. Trouxemos clareza e aplicabilidade sobre temas como planejamento, comunicação, didática, aconselhamento, fé cognitiva, discipulado, ajudando a igreja a adquirir uma visão mais ampla. Mesmo nas realidades locais, fomos capazes de utilizar instrumentos de pesquisa e análise para ajudar nos posicionamentos das igrejas através da consultoria. Em nossas formações missionais sempre observamos que nosso trabalho não é para todos os membros de cada igreja, mas para aqueles cuja capacitação precisa ser ampliada. Com isso estabelecemos cooperações sólidas entre nossa agência e as igrejas a quem servimos, para que a obra do ministério cresça.
Muito se falou na visão de Reino nos anos do recente despertamento missionário. Hoje, esse discurso tem sido diminuído pelas novas eclesiologias de concentração e crescimento rápido. A igreja se tornou mais egoísta e egocêntrica, e isso opera contra uma formação missional ampla. A formação pela igreja local proporciona um conhecimento contextualizado, mas não prepara os obreiros para lidar com realidades diversas. Se a formação não for diversificada, a igreja limitará seu avanço e acabará estagnada, enquanto o mundo ao redor se transforma rapidamente. Chamo de missiologia da avareza as propostas recentes que diminuem o investimento na formação e envio de obreiros. A pior consequência, no entanto, é que quanto menos a igreja oferta para missões, menos recebe em retorno. Quanto mais tentamos reter recursos e pessoas, menos temos. A generosidade de investir e enviar obreiros em cooperação ampla é o segredo do verdadeiro crescimento.
Outro fator que impede uma formação missional cooperada e mais ampla é o paroquialismo. Com a fragmentação pós-moderna, as igrejas se dividem, tornam-se independentes e têm mais dificuldade em manter sua integridade. Assim, fecham-se em si mesmas e tentam se proteger de influências externas: ‘o mundo deixa de ser sua paróquia’. Com isso, porém, vem a incapacidade de interagir com diferentes realidades, e a igreja perde sua relevância. Não é possível ministrar neste século sem ‘se fazer tudo para com todos’, e a formação local não oferece isso. Quanto mais obreiros a igreja envia para fora e sustenta, mais obreiros surgem. É o que chamávamos de ‘igreja missionária’. O suporte às vocações gera um ambiente fértil para o surgimento de novos obreiros, enquanto a tentativa de reter vocacionados desestimula novas vocações. A insegurança que leva muitos pastores a quererem manter controle sobre todos os movimentos da igreja e de seus subordinados opera contra o crescimento. Jesus não agiu assim. Depois de oferecer um treinamento diversificado e abrangente, ele delegou uma missão mínima – discipulem, preguem, testemunhem, ministrem – e passou a acompanhar e apoiar o trabalho de seus missionários. Foi assim que a igreja cresceu. Quando rompemos com esse modelo flexível, a igreja diminui e se enfraquece.
Olhar para este cenário me ensina que a igreja local é o ponto de partida, mas não o limite do treinamento missional. Para sermos fiéis à missão dada por Cristo, precisamos reconhecer as limitações naturais da formação local e valorizar o papel das agências missionárias, inclusive aquelas dedicadas ao ensino, como parceiras essenciais. Se realmente queremos ver obreiros preparados para enfrentar desafios além de nossas fronteiras, devemos estar dispostos a enviá-los para uma formação mais ampla e especializada: “Atire o seu pão sobre as águas, e depois de muitos dias você tornará a encontrá-lo.” Ec 11:1 NVI. Essa é uma decisão de compromisso com o Reino, que não diminui a importância da igreja local, mas a engrandece enquanto ela participa na expansão do Evangelho até os confins da terra, abraçando plenamente a visão do Reino de Deus.
………..