A Inteligência Artificial em missões

O desafio de submeter a tecnologia ao mandato divino

Por José Bernardo.

A Carta aos Romanos, um dos escritos mais emblemáticos do apóstolo Paulo, não foi escrita por ele. Tércio, o amanuense, deixa isso claro: “Eu, Tércio, que redigi esta carta, saúdo vocês no Senhor” Rm 16:22, NVI. Em outras cartas – aos coríntios (1Co 16:21), aos gálatas (Gl 6:11), aos colossenses (Cl 4:18), aos tessalonicenses (2Ts 3:17) – Paulo só escreve a saudação final, como a deixar uma necessária marca pessoal. Visão ruim, pressa ou praticidade, não importa a razão: ninguém duvida que aquelas ideias e palavras são inspiradas pelo Espírito Santo a ele mesmo. Então, por que alguém se incomodaria com uma Inteligência Artificial conversacional ajudando na escrita missiológica, na pesquisa teológica ou no estudo e ensino bíblicos?

Tem gente que entrega o ministério inteiro para a IA, eu sei. Até pedem que ela mesma ore no lugar deles. Preguiça e desonestidade aparecem em textos pretenciosos, plágios descarados, números inventados – mas isso é velho como o mundo, com ou sem tecnologia. O problema não é a ferramenta, é o mau-caratismo de quem a usa. Ainda assim, vejo três objeções gritando histericamente, tanto na missão cristã como no meio acadêmico. Preconceito: nas escolas e universidades, há costumes e normas sagradas de escrever, e a IA incomoda como a calculadora já incomodou nas aulas de matemática. Medo: é impeditivo o pavor de que alunos e autores dependam do computador e desvalorizem o trabalho intelectual – como aconteceu recentemente com uma revista científica australiana, cheia de artigos gerados por IA, rasos e errados. Ignorância: sem uma ética decente ou regras claras para o uso dessas ferramentas, ficamos em um vácuo em que nem mesmo o silêncio dos inocentes pode ser ouvido.

Eu dirijo um ministério de vanguarda, altamente inovador. Eu mesmo, como early adopter, sempre ouço perguntas sobre se é certo usar IA na missão – seja na escrita, no ensino, até em animações e vídeos evangelísticos. Essa reticência atrasa a Igreja, como atrasou no uso da música, teatro, rádio, cinema, TV e Internet. Antes de perdermos novamente o bonde da história, quero mostrar, com base no que vivo todo dia, três aplicações da IA no ministério e na missão. GPT, Grok, Gemini, You e Meta me encaram da tela enquanto escrevo – são testemunhas de que não vou deixar esse assunto de lado.

A IA como assistente na escrita missiológica

Escrevo bastante: artigos, ensaios, livros e muitos textos didáticos. No entanto, considero-me um escritor utilitarista; escrevo porque, o que e quando é necessário. Nessa produção, as IAs conversacionais se tornaram, desde o início, aliadas indispensáveis. Usualmente, parto do estudo indutivo de uma passagem bíblica, depois defino o objetivo do meu texto e o público, crio a estrutura, descrevendo detalhadamente o conteúdo e as informações de cada parágrafo e, finalmente, determino a quantidade de palavras e acrescento indicações da linguagem e estilo. Então, uso todas essas informações como prompt para a IA e solicito a redação do texto, que levo de volta ao editor para revisar, assegurando a autenticidade de cada ideia e a legitimidade de todas as informações. Em seguida, solicito uma correção gramatical final, ou textual sem prejuízo das nuances autorais, e o texto estará pronto para publicar. Eventualmente, utilizo a IA para traduzir para outras línguas em que costumo publicar e faço nova revisão e correção de cada uma. Com isso, asseguro que a IA seja realmente minha assistente, não uma ghost-writer intrometida, enredando os leitores em discursos indecisos, que não refletem a fé e a verdade.

Domar os impulsos niveladores das IAs é um desafio. A linguagem polida, artificialmente plana, a falta de personalidade, é tema para novos aplicativos que se propõem a identificar o uso de tecnologia na geração de textos e outros que se oferecem para “humanizá-los”. Há quem não se importe com isso, tanto que mini-coaches populam a internet, reportando que ficaram milionários vendendo PDFs gerados por chatbots. Mas essa desfaçatez é inaceitável quando tratamos do cumprimento da missão que vem de Deus, quando queremos produzir frutos que permanecem, ver vidas transformadas pelo poder da Palavra de Deus. Nesse caso, a IA deve ser como Tércio, o amanuense. Alguma contribuição é admissível, mas o resultado será produto da Lectio Divina – da leitura bíblica, oração, meditação, contemplação e testemunho – nunca de um apanhado de ideias controversas, alinhavadas por algum algoritmo humanista.

Por isso, a partir da minha experiência, quero recomendar que a IA conversacional seja utilizada sem preconceito, medo ou ignorância, como verdadeiro assistente para o estudo laborioso, a piedade bíblica e a paixão missionária. Creio que a chave na escrita missiológica é a produção de prompts bem elaborados e cuidadosamente detalhados, firmemente fundamentados nas Escrituras, em uma perspectiva da Teologia Bíblica. Nunca comece a escrever um texto sem antes dizer à IA tudo o que o texto deve conter. Não admita ideias que não sejam suas, que não estejam firmadas nas Escrituras. Tenha a certeza de que cada texto reflita a verdade: a Palavra de Deus é a verdade.

A IA como assistente na produção teológica

Aos 17 anos de idade, nos primeiros meses de Seminário, frustrei-me com a Teologia Sistemática e encontrei a Teologia Bíblica. Nos meses seguintes aprendi a estudar as Escrituras pelo método indutivo e dediquei-me a isso nesses mais de quarenta anos. Com a prática, desenvolvi uma metodologia de exegese, hermenêutica e liturgia do texto, utilizando ferramentas de pensamento bíblicas ao qual chamei de VOS (Ver, Ouvir e Sentir). Ter uma metodologia objetiva me permitiu instruir as IAs que uso para desenvolver estudos bíblicos. O método VOS está fixado na customização do meu ChatGPT 4.5 e sempre adiciono um arquivo de instrução em cada novo estudo bíblico que faço com a ajuda do Grok. No entanto, nenhuma IA me apresenta um estudo bíblico que eu possa utilizar diretamente, mas seu trabalho, depois da leitura inicial da passagem estudada, abre um leque de ideias úteis para o processo.

Além disso, na elaboração de cada expressão do texto bíblico, as IAs ajudam muito nas pesquisas de literatura, geografia, história, biografia, antropologia, economia e teologia. Melhor do que os comentários bíblicos, bíblias de estudo, manuais de antropologia e atlas geográficos, é possível fazer com que a IA evite comentários editoriais e opinativos, atendo-se ao texto bíblico e referenciando nele cada informação. Também é possível formular bibliologias puramente bíblicas e discutir questões etimológicas e gramaticais das línguas originais. Como baseio o estudo de cada perícope em uma série de 12 perguntas objetivas, em média, é possível obter respostas bastante completas para cada uma. No caso de heresias que vêm junto com as pesquisas, como as da Missão Integral em sua proposta humanista, firmes observações fundamentadas serão suficientes para ajustar o foco.

Já realizei centenas de estudos bíblicos com a assistência das IAs, particularmente do ChatGPT e do Grok. Nos últimos três meses fizemos 24 estudos bíblicos na carta de Tiago, 31 em Provérbios, 14 em Salmos e estamos fazendo 58 nas Cartas Pastorais. A minha experiência é que dispondo de uma metodologia lógica e bem especificada é possível conseguir estudos qualificados, que depois podem ser melhorados com a ajuda da própria IA. Um posicionamento teológico bem fundamentado também permitirá apontar os eventuais erros que aparecerem, fortalecendo o aprendizado da IA e criando condições para a melhoria.

A IA como assistente na formação ministerial.

No ano passado, lançamos a Escola Ergátes de formação ministerial. É um curso de 2.000 horas de Teologia Bíblica com ênfase no discipulado: 3 meses na base missionária e 6 meses no campo. Neste ano, equipamos a sala de aula com computadores para que nossos alunos possam utilizar a Inteligência Artificial na pesquisa e na redação de textos. Obviamente, há muitas perguntas sobre os limites da utilização, já que os jovens chegam para nosso curso carregados dos preconceitos, medos e ignorâncias do sistema educacional. Além disso, a maioria das igrejas ainda não decidiu se as IAs são uma bênção ou uma maldição. Cabe a nós orientá-los ao melhor uso ministerial desse recurso, que tomará cada vez mais espaço de nossa experiência digital.

Uma das orientações que tenho dado aos nossos alunos é a que o personagem de Jack Warden dá ao de Paul Newman no filme The Verdict: “Nunca faça uma pergunta a não ser que saiba a resposta para ela”. Ele chamou essa de a regra prioritária que ensinou na faculdade de direito. De fato, o personagem acabara de afundar o caso jurídico em que atuava porque fez uma pergunta que levou a testemunha a surpreendê-lo com um comentário muito desfavorável. Se nossos alunos perguntam à IA sobre um assunto que não dominam, não serão capazes de discernir se a resposta é verdadeira ou falsa, importante ou irrelevante, urgente ou secundária. Essa regra, mais do que o medo do Ctrl C + Ctrl V, delimita o uso do computador no aprendizado teológico e na formação ministerial. O constante acesso ao conhecimento do aluno, em conversas e apresentações dos temas, é a prova necessária.

Como a televisão, a calculadora ou o computador, o uso da IA deve ser disciplinado, não evitado. Deve-se envolver o próprio aluno no autoexame do desenvolvimento pessoal – se a tecnologia o está ajudando a aprender mais e melhor, ou se o modo como a está utilizando diminui o exercício e o desenvolvimento intelectual. A constante conversa sobre esse assunto ajudará a construir normas e ética para algo que ainda está em pleno desenvolvimento e que, portanto, precisa ser considerado dentro de um cenário dinâmico.

“Então você devia ter confiado o meu dinheiro aos banqueiros, para que, quando eu voltasse, o recebesse de volta com juros”, Mt 25:27, NVI. Este versículo nos traz duas lições importantes, expressas na parábola dos talentos e através de todo o Novo Testamento: Deus exige resultados, e os meios para obtê-los estão sob a nossa administração. Tenho insistido nesses princípios durante muitos anos. Falando a uma igreja que confunde evangelização com semeadura e esquece que fomos chamados para dar frutos que permanecem, tenho sempre lembrado que nós fomos enviados para colher. Esse conceito de “frutificar” deve estar presente também no modo como avaliamos o uso das IAs: o que importa é se nós e nossos alunos estamos produzindo os frutos que o Senhor deseja.

A discussão que devemos fazer não é se a Inteligência Artificial deve ou não ser usada na missão e no ministério. A questão é se estamos produzindo resultados agradáveis ao Senhor e se podemos melhorar tais resultados. As inteligências artificiais são recursos à nossa mão; se vamos usá-las ou não, depende de nossa mordomia, nosso serviço ao Senhor. Se sabemos que podemos produzir mais frutos usando-as, seremos negligentes se não o fizermos. Porém, se utilizarmos a IA visando apresentar melhores resultados para a glória de Deus, ninguém poderá nos acusar. O uso correto da Inteligência Artificial é aquele que produz o fruto do Espírito na santificação e o fruto do arrependimento na evangelização. É por nossos frutos que somos conhecidos.

Foto de José Bernardo

José Bernardo

Fundador e presidente da missão AMME

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