Culpa, vergonha ou medo

A confissão na jornada cristã em diferentes culturas.

Em 1998, o então presidente Bill Clinton admitiu ter tido um relacionamento inadequado com uma estagiária da Casa Branca. Esse acontecimento desencadeou um enorme escândalo e levou a um processo de impeachment, do qual ele foi posteriormente absolvido pelo Senado dos EUA. Lembro-me de ter lido, naquela época, articulistas brasileiros que comentavam a diferença entre a confissão pública na cultura estadunidense e na cultura brasileira. Desde então, tenho considerado essa diferença e a observado na comparação ainda com outras culturas. Como a confissão é uma disciplina espiritual básica para a fé cristã, quero tratar do assunto nesse ensaio, observando que a confissão, embora complexa e difícil, é apenas o início de uma jornada à qual o cristão não pode se negar. Veremos que, depois de admitir fraquezas, carências ou pecados, é necessário ir mais adiante.

Um dos missiólogos que aplicaram teorias antropológicas dessa temática à evangelização foi Jayson Georges. Em seu livro de 2014, ‘The 3D Gospel: Ministry in guilt, shame, and fear cultures’ (O Evangelho 3D: ministério em culturas de culpa, vergonha e medo), ele explica três categorias culturais e mostra como a pregação do Evangelho deve se situar com inteligência para ser compreendida. Cultura de Culpa/ Inocência: em culturas mais individualistas, as ações são geralmente julgadas pelo prisma do certo e do errado conforme definido por leis e regras; A culpa está relacionada à responsabilidade pessoal nas transgressões, enquanto a inocência é mantida através da obediência aos padrões convencionais; nessas culturas a confissão é vista como um meio de restaurar a inocência. Cultura de Vergonha/ Honra: em culturas mais coletivistas o foco está na percepção dos outros e no status social; a vergonha surge quando a honra de uma pessoa ou família é ameaçada ou diminuída aos olhos da comunidade; por outro lado, a honra vem do reconhecimento dos comportamentos alinhados com as expectativas sociais; em contextos assim, confessar, embora mais difícil, pode ser uma maneira de restaurar a honra perdida. Cultura de Medo/ Poder: nesses sistemas, o medo de consequências negativas, incluindo a punição sobrenatural, domina as motivações comportamentais; as pessoas buscam poder ou proteção para evitar ou controlar as forças que temem; a confissão, nesses contextos, pode ser um ato sacrificial de propiciação para evitar a ira ou o castigo e alcançar uma sensação de segurança ou poder.

Enquanto a responsabilidade pessoal promovida pelo protestantismo deu à maioria dos norte-americanos a cultura de culpa/ inocência, onde o reconhecimento dos próprios erros é celebrado como virtude, a cultura católico-romana infundiu nos grupos majoritários dos brasileiros a vergonha/ honra. Confessar é admitir a diminuição da honra e trazer sobre si e o coletivo, família, igreja, a vergonha que deveria ser evitada. Confissões públicas são, portanto, constrangedoras e debilitantes. Uma frase do livro ‘The 3D Gospel: Ministry in Guilt, Shame, and Fear Cultures’, de Jayson Georges, publicado originalmente em 2014 e consultado na edição digital de 2017, ilustra comparativamente essa questão: “Remover a vergonha requer mais do que perdão. A vergonha produz sentimentos de humilhação, desaprovação e abandono. Vergonha significa inadequação de toda a pessoa. Enquanto a culpa diz: ‘Cometi um erro’; a vergonha diz: ‘Eu sou um erro’.” (GEORGES, 2014/ 2017). Sentir a culpa fisiologicamente, conectada ao ser e não ao fazer, dificulta imensamente a admissão, provocando comportamentos de negação, forte oposição e outros mecanismos de defesa. Quando finalmente a confissão chega, ela deixou um rastro de sofrimento pessoal, mais difícil de curar do que o erro em si mesmo.

Não vou considerar, nesse ensaio, a diferença da cultura de medo/ poder, sob a qual países de tradição animista se encontram, como nos campos missionários da África e Ásia. Mas é fácil perceber que, depois da confissão, o conselheiro cristão ou discipulador nos Estados Unidos, em uma cultura de culpa/ inocência pode se concentrar na correção de comportamentos, enquanto no Brasil é necessário trabalhar na restauração da pessoa e da comunidade. Dentro de nossa cultura de vergonha/ honra, a confissão destrói a pessoa, afeta negativamente a comunidade e provoca rejeição e exclusão. Mas, falando de confissão, devo enfatizar que, não importando o contexto cultural, este é apenas o primeiro passo na jornada do aconselhamento e do discipulado. Americanos podem parar na confissão porque a veem como um valor em si mesma. Brasileiros podem não avançar, pois a confissão é seguida por auto-obliteração e estigmatização social. Mas a teologia e o aconselhamento bíblicos exigem uma continuidade, como disse Tiago: “Portanto, confessem os seus pecados uns aos outros e orem uns pelos outros para serem curados. A oração de um justo é poderosa e eficaz.” Tg 5:16.

O método terapêutico que diviso no salmo 51 e denominei ‘Haneni’, tem três fases: Confissão, Conversão e Correção. Uma confissão sincera e realista abre a porta para tomar um novo caminho e para a perseverança nele. Infelizmente, lidamos com muitas pessoas que nunca chegam a uma confissão válida e, se o fazem, não tem o interesse na mudança e na perseverança. Confissões assim são perda de tempo e não valem o esforço da liderança no aconselhamento e no discipulado. A confissão bíblica não é um recurso para apagar a culpa e restabelecer a inocência, afastar a vergonha e preservar a honra ou abafar o medo e adquirir poder. A confissão é a iniciativa da Metanoia, a transformação da mente, é precursora da santidade, do viver corretamente, conforme a vontade de Deus. Sem essa continuidade, a confissão é inútil, como ensinou o autor em Provérbios: “Quem esconde os seus pecados não prospera, mas que os confessa e os abandona encontra misericórdia.” Pv 28:13.

Foto de José Bernardo

José Bernardo

Fundador e presidente da missão AMME

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