Praticantes da Palavra

O movimento da Reforma pela Bíblia.

A celebração do Dia da Reforma nos lembra que esse movimento não é um evento isolado, mas uma busca contínua pela prática das Escrituras. Essa caminhada começou com os protoreformadores, como John Wycliffe (c. 1328–1384) e Jan Hus (c. 1369–1415), que criticaram a corrupção na Igreja, defenderam a tradução da Bíblia para as línguas vernaculares e afirmaram a necessidade de submeter a prática e a doutrina à autoridade das Escrituras. Embora perseguidos e condenados por heresia, suas ideias continuaram a se espalhar, inspirando outros ao longo dos séculos. Antes e depois deles, muitos também trabalharam no caminho para a reforma, como Peter Waldo, Marsílio de Pádua e Girolamo Savonarola.

Em 31 de outubro de 1517, Martin Luther (Martinho Lutero, 1483–1546) protestou publicamente contra as práticas da Igreja Romana, ao afixar suas 95 teses na porta da igreja de Wittenberg. Desde então, ele passou da indignação à uma profunda conversão bíblica, liderou o movimento luterano na Alemanha e além, ensejando também o surgimento de diversos ramos do protestantismo, cada um enfatizando diferentes aspectos da vida conforme as Escrituras.

Os anabatistas (c. 1525), da reforma radical na Suíça, insistiram na prática fiel das Escrituras, no batismo subsequente a uma profissão consciente de fé e na separação entre Igreja e Estado. Enquanto isso, João Calvino (1509–1564) organizou, em Genebra, uma teologia centrada na soberania de Deus e publicou as Institutas da Religião Cristã (1536), consolidando doutrinas que moldaram o segmento reformado conhecido como calvinista. Simultaneamente, os puritanos, grupos ingleses, buscavam a pureza doutrinária para a igreja Anglicana, ainda comprometida com tradições católicas. Assim, a reforma continuou a evoluir.

O teólogo holandês Jacó Armínio (1560–1609) destacou o ensino bíblico sobre o livre-arbítrio humano e a necessidade de responsabilidade pessoal na salvação. Seu compromisso com as Escrituras levou seus seguidores a publicarem, em 1610, os Cinco Artigos da Remonstrância. Os batistas (1609), tanto particulares (influenciados pelo calvinismo) quanto gerais (influenciados pelo arminianismo), surgiram de grupos puritanos não conformistas ingleses, liderados por John Smyth, em busca de fidelidade às Escrituras e da simplicidade na vida piedosa. Eles reforçaram a necessidade de uma fé pessoal e pública.

Em 1675, com a publicação de Pia Desideria por Philipp Jakob Spener (1635–1705), iniciou-se um avivamento no meio luterano, que procurava nas Escrituras não apenas uma fonte de conhecimento, mas uma regra para a vida cristã. Esse movimento, conhecido como Pietismo, reacendeu o fervor espiritual e moldou novos passos na Reforma, preparando o caminho para o metodismo e a missão global. No século XVIII, o metodismo, liderado por John Wesley (1703–1791), enfatizou a santificação e a responsabilidade pessoal, renovando as práticas de discipulado e de missões.

O movimento evangelical se desenvolveu a partir dessas raízes, especialmente com o Primeiro Grande Despertamento (1730–1750), liderado por John Wesley e George Whitefield, com a contribuição de Jonathan Edwards na América do Norte. O Segundo Grande Despertamento (1790–1840) impulsionou ainda mais o evangelicalismo, promovendo uma pregação contextualizada e o impulso às missões globais. A fundação da Aliança Evangélica Mundial (WEA) em 1846 reuniu diversas expressões da reforma, dando força ao evangelicalismo e impulsionando a essência missional das igrejas bíblicas.

No início do século 20, o pentecostalismo ganhou força, especialmente após o Avivamento da Rua Azusa (1906), liderado por William J. Seymour, enfatizando as Escrituras sobre a pessoa e a obra do Espírito Santo, bem como a experiência pessoal da fé. Interagindo com o pentecostalismo, o evangelicalismo progrediu assumindo diferentes formas, como o neoevangelicalismo dos anos 1940 e 1950, representado por figuras como Billy Graham. Esse movimento buscou manter a fidelidade bíblica, promovendo ao mesmo tempo um engajamento cultural relevante, em contraste com o isolamento fundamentalista.

No final do milênio, o movimento da Igreja Emergente, formado por crentes preocupados com a relevância da fé bíblica na pós-modernidade, buscou redescobrir a espiritualidade cristã em um contexto de pluralismo e mudanças culturais. No Brasil, uma contraparte distinta surgiu no movimento ‘Church’, com foco na cultura urbana e nas novas gerações, adotando uma abordagem mais voltada para o evangelismo e discipulado, enquanto ainda se engajava culturalmente. O esforço para explicar biblicamente os próprios passos distinguiu esse movimento de heresias que buscaram suas justificativas nas ciências políticas, filosofia, sociologia e psicologia.

Esse contínuo movimento demonstra que a Reforma não é um evento isolado nem pertence a alguma denominação específica, mas é uma busca contínua pela Palavra de Deus. A máxima, de autor desconhecido, ‘Ecclesia semper reformanda est’ (A Igreja deve estar sempre sendo reformada), expressa essa realidade: não se trata de mudança por mudança, de rebeldia ou separatismo, mas de submissão constante e plena obediência às Escrituras como autoridade suprema, acima da tradição e do magistério. Reduzir a reforma a uma instituição, referenciá-la a um mestre na Igreja, desonra a justa aspiração dos crentes que a vivenciam, condenando-a ao mesmo formalismo que ela busca superar. Aqueles que tentam se apropriar da reforma para promover um segmento em particular, envergonham a Igreja de Cristo.

Hoje, a esperança da reforma continua viva em iniciativas que enfatizam a fidelidade à Palavra de Deus. Igrejas e líderes que cultivam essa busca incessante pela verdade bíblica mantêm o espírito reformador, reafirmando que a reforma contínua da Igreja não pertence a uma tradição ou teólogo, mas é a caminhada de todos os que desejam ouvir e obedecer à voz de Deus. A verdadeira reforma não é propor doutrinas ou impor dogmas, mas a completa obediência à eterna Palavra de Deus em cada geração. Assim, ao celebrarmos essa reforma em movimento, ecoamos a exortação de Tiago: “Sejam praticantes da palavra, e não apenas ouvintes, enganando-se a si mesmos” (Tg 1:22, NVI).

Foto de José Bernardo

José Bernardo

Fundador e presidente da missão AMME

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